A Igreja Católica e as campanhas de vacinação das monarquias ibéricas, 1796-1820: a experiência de Portugal e da Espanha!

Por Eduardo Cruz,

 

Muito se tem opinado, nas redes sociais e na imprensa, sobre o curso de ação que o Governo Federal deve seguir para minorar os efeitos da presente pandemia. Há quem dê preferência aos métodos curativos e há quem deseje complementá-los com medidas preventivas, com destaque para a vacinação. Há inclusive quem ponha em dúvida a existência da pandemia.

Não é meu propósito discutir a eficácia deste ou daquele tratamento curativo, primeiro porque falta-me competência técnica na matéria, segundo porque o grosso da polêmica recai sobre as vacinas. É sobre elas que tenciono refletir. Em linhas gerais, a controvérsia gira em torno de duas questões: (1) O fiel católico pode imunizar-se com vacinas desenvolvidas a partir de pesquisas com células fetais? (2) Como devem proceder os governantes ao conduzir campanhas de vacinação?

A primeira pergunta acha-se já respondida pelo Pe. Arnaud Sélégny, Diretor de Comunicação da FSSPX, em artigo disponível na página da Fraternidade [1]. Resta-me responder à segunda, embora ciente das limitações decorrentes da minha condição de leigo.

Ao buscar respostas, optei por tatear o terreno seguro oferecido pelas monarquias ibéricas na sua fase tradicional, ou seja, antes das revoluções que as transformaram em monarquias parlamentares na primeira metade do século XIX. Aquele período, acredito eu, oferece experiências que podem iluminar o nosso caminho nessa era de incertezas. Os acontecimentos narrados a seguir ocorreram sob os reinados de Carlos IV e Fernando VII, na Espanha, e D. João VI, em Portugal. Parte da história transcorreu no Brasil, uma vez que o Rei viveu entre nós quando a Corte estava no Rio de Janeiro (1808-1821).

Considero necessário esclarecer de antemão que os poderes públicos não se limitam ao Estado, tampouco aos seus temporários dirigentes, acima referidos como governantes. Com efeito, a Igreja Católica é igualmente um poder público, ao qual o Estado deve estar associado em posição aquiescente, conforme dispõe a bula Unam Sanctam. Assim funcionavam as monarquias ibéricas tradicionais, não sendo outro o motivo do recorte cronológico aqui escolhido.

Ressalvo que acato, com filial obediência, o Magistério da Igreja. Portanto, se nos parágrafos abaixo houver algum erro, corrijam-me os sacerdotes afeitos à Tradição, publicamente ou em privado, para que eu possa retificar o texto. Dito isto, vamos aos fatos.

 

I – O CASO DE PORTUGAL:

 

A vacina contra a varíola surgiu na Inglaterra em 1796. Tão logo soube da sua existência, o governo luso adotou providências para incorporá-la à sua política sanitária. Vivíamos então sob o cetro de D. Maria I, a Piedosa [2], que àquela altura já havia delegado ao seu filho, D. João VI, o encargo de administrar o Reino na condição de regente. Dele partiu a iniciativa de editar o Decreto de 24 de maio de 1796, que determinou a realização de experiências conducentes ao desenvolvimento de imunizantes [3].

Para dar execução ao decreto existia a Provedoria-Mor de Saúde [4], que recorreu às instalações existentes no hospital mantido pela Irmandade de São Bartolomeu dos Alemães, em Lisboa. Ali processaram-se os testes que, três anos depois, deram a Portugal seus primeiros lotes de vacina antivariólica [5]. Critérios de segurança orientaram a decisão de capacitar o país, uma vez que “a vacina era importada da Inglaterra e, com certa freqüência, faltava no mercado local” [6].

As campanhas de vacinação, inicialmente restritas ao território metropolitano, foram estendidas ao restante do império. Chegaram ao Brasil por ordem da Secretaria de Estado, mediante ofício enviado ao Vice-Rei, D. Fernando José de Portugal e Castro, em outubro de 1802. Instruções adicionais, despachadas em abril de 1804, recomendavam a distribuição de folhetos para convencer a população a colaborar [7]. Nalgumas capitanias lançou-se mão da vacinação obrigatória, com destaque para o Estado de São Paulo, onde o governador Antônio José de Franca e Horta impôs penalidade de multa e prisão aos recalcitrantes. A medida mostrou-se contraproducente, razão pela qual foi posta de lado [8].

Enquanto isso, em Portugal, D. João VI fazia saber à Gazeta de Lisboa sua decisão de vacinar os infantes D. Miguel e D. Isabel Maria, por achar-se “convencido da excelência, eficácia e segurança da inoculação” [9]. Por uma providencial coincidência, para sorte do príncipe regente, naquele ano o Papa Pio VII atribuíra ao Dr. Alessandro Flajani a missão de percorrer laboratórios da Europa para verificar os avanços que se faziam no campo da medicina (1805). Do périplo resultou a apresentação de um relatório, posteriormente convertido em livro com um capítulo reservado à temática da imunização contra varíola [10]. Desta edição o governo luso adquiriu cópias, felizmente em tempo hábil, porque logo em seguida a Corte precisou migrar de Lisboa para o Rio de Janeiro enquanto as tropas de Napoleão chegavam às fronteiras do Reino [11].

A família real chegou ao Brasil em 22 de janeiro de 1808. D. João VI agiu sem demora. O cargo de Provedor-Mor de Saúde foi aqui instituído em 27 de fevereiro de 1808, reproduzindo a estrutura existente em Portugal. Três anos depois, sobreveio a criação da Junta da Instituição Vacínica da Corte, encarregada de coordenar as campanhas com ajuda das autoridades eclesiásticas. Na capital, por exemplo, a vacinação era feita às quintas-feiras e domingos na Igreja de Nossa Senhora do Rosário [12], ao passo que no Recife ocorria no Hospital da Ordem Terceira de São Francisco [13].

Parece-me útil, a título de amostra, transcrever o art. 19 do Regulamento do Instituto Vacínico da Capitania de São Paulo, mui similar aos regulamentos editados pelas demais capitanias por ordem da Junta:

 

Sendo conhecida a grande influência que o clero tem sobre o povo, seria útil que S. Exma. Revma. o Bispo ordenasse por uma pastoral que os vigários e mais o clero exortassem os seus fregueses em todas as ocasiões, principalmente depois da missa conventual, para que eles sem repugnância se utilizem desta preciosa dádiva que a benéfica Providência quis conceder à aflita humanidade, podendo com toda verdade afirmar-lhes que é a vacina um seguro preservativo das mortíferas bexigas naturais, e sua prática sem o menor perigo, e que os pais que perdem seus filhos de bexigas, podendo vaciná-los, são responsáveis pela sua morte[14].

 

Conquanto desse preferência a métodos persuasivos, o Regulamento previa igualmente o uso da força. Fazia saber que “deverá ser punida toda aquela pessoa que tiver bexigas naturais em casa e que não der parte imediatamente ao Inspetor da Vacinação” (art. 15). Determinava a remoção dos contaminados, “para que não haja bexiguentos dentro das povoações ou comunicação com os demais habitantes”, e mandava mapear os súditos não-vacinados: “Por este mapa farão pouco a pouco vacinar e terão cuidado por este modo de conservar a vacina de braço a braço” (art. 7º). O art. 11 conferia ao Inspetor autoridade para adotar medidas excepcionais “quando for necessária alguma providência a bem da vacinação”. Não está claro se tais dispositivos contemplavam a caça aos fujões. Na falta de dados exatos, presumo que a interpretação variava segundo o juízo das autoridades responsáveis.

Resta saber até que ponto a estratégia acima foi bem-sucedida. Indicam os registros oficias que a campanha de 1812 vacinou 3.323 pessoas. O número cresceu até 1817, quando atingiu a marca de 19.993 cidadãos. Declinou no ano seguinte. Para reduzir a desconfiança popular, D. João VI fez vacinar sua neta à vista de todos [15].

Em 12 de fevereiro de 1820, a Corte elaborou o Plano para o Estabelecimento da Vacinação nas Capitanias de São Paulo, Rio Grande de São Pedro do Sul e Minas Gerais, que em seu art. 7º versava sobre a divisão de tarefas com o clero: “O Capitão-General se entenderá com o Bispo para que este ponha de aviso os párocos, que devem cada um de per si concorrer para a propagação da vacina, admoestando os seus fregueses que a abracem como um benefício” [16].

A vacinação obrigatória foi adotada décadas mais tarde, no contexto de monarquias parlamentares que não tinham um vínculo tão estreito com a Santa Sé. Aqui ela foi instituída por D. Pedro II, nos termos do art. 29 do Decreto nº 464, de 17 de agosto de 1846. Em Portugal, ela foi introduzida no dia 2 de março de 1899, sob o reinado de Carlos I. Desta comparação arrisco extrair uma conclusão preliminar: na monarquia tradicional, caracterizada pelo entrosamento Igreja-Estado, há menor necessidade de medidas coercitivas, porquanto é mais fácil obter a cooperação espontânea da população. O mesmo não sucede nas monarquias parlamentares. Vejam quanta falta nos faz a sociedade orgânica de outrora…

 

II – O CASO DA ESPANHA:

 

Não foi muito diferente o curso dos acontecimentos na Espanha, onde a vacina antivariólica disseminou-se pelas mãos do Dr. Francisco Javier Balmis, médico pessoal do Rei Carlos IV. Achava-se ele nesta função, após duas décadas de serviço no Corpo de Saúde do Exército (1770-1794), quando o monarca pôs o tema na ordem do dia. Mediante decreto editado em 30 de novembro de 1798, ficou assentado que os hospitais e casas de misericórdia funcionariam como postos de vacinação uma vez por semana, cabendo às autoridades locais convocar a população. Ao Dr. Balmis e outros médicos foi confiada a missão de apurar os métodos de produção e aplicação. Dentro de poucos anos, a Espanha assimilou o know-how desenvolvido no Exterior, com a publicação do livro “Orígen y descubrimiento de la vaccina”, do Dr. Pedro Hernández, docente do Real Colégio da Corte. Por volta de 1803, após sucessivos testes, o país consolidou suas capacidades no setor.

Assentada em tais bases, a Espanha sentiu-se segura para imunizar a população do seu império ultramarino. Assim surgiu a Real Expedição Filantrópica da Vacina, que zarpou a bordo da corveta María Pita [17] em 30 de novembro de 1803, sob direção do Dr. Balmis. O périplo durou três anos. A equipe aportou nas Ilhas Canárias, em Porto Rico, em Cuba, na Venezuela, na Colômbia, no Equador, no Peru, no México, nas Filipinas, etc. Em cada uma dessas províncias tomou-se o cuidado de instruir médicos locais, para que eles pudessem conduzir as campanhas seguintes por conta própria. Ficavam constituídas, assim, juntas de vacinação permanentes que replicavam o modelo vigente na metrópole.

O envolvimento do clero foi essencial para gerar o ambiente de confiança que predispôs a população a deixar-se vacinar. Em Cuba, por exemplo, os bispos diocesanos ordenaram aos padres que lessem a ‘Exhortación al uso general de la vacuna’ durante os sermões. Do documento em apreço destaco o seguinte excerto:

 

Vejo vocês aguardando ansiosamente a aplicação de minhas reflexões ao assunto de que me proponho falar. E talvez agora vocês ouçam com uma fria surpresa que desejo falar-lhes do conservante saudável da vacina. Sim, meus fiéis, da vacina; deste dom do Céu feito à humanidade; deste tão admirável como fácil remédio, aquele encontrado por um acaso feliz, proclamado por todos os doutores sensatos da Europa, destes domínios e de todas as regiões. Remédio credenciado e canonizado, digamos assim, por uma experiência contínua, e adotado por todas as nações civilizadas, tornou-se, não apenas uma represa impenetrável contra a torrente devastadora da varíola, mas uma força quase mágica e universal, neutralizando em cada indivíduo da espécie humana o vírus venenoso que parece infectá-la desde a sua concepção, como o pecado original, e finalmente a fará desaparecer da face da Terra. A isso se dirigem as redobradas tentativas dos soberanos, dentre os quais o nosso benemérito Monarca se destacou enviando uma expedição custosa a essas regiões remotas de seu Império para comunicar e propagar tal achado precioso[18].

 

Ao folheto acima seria possível acrescentar outros de teor similar, como a ‘Exhortación que el Obispo de Puebla hace a sus Diocesanos para que se presten con docilidad á la importante práctica de la Vacuna’, distribuída por ordem do Bispo Manuel Ignacio González del Campillo [19], e a carta pastoral expedida pelo Bispo de Antequera de Oaxaca, Antonio Bergosa y Jordán, outrora Inquisidor-Geral do México [20]. Havia instruções expressas para que “na formação da Junta de Vacinação se reúnam as jurisdições espiritual e temporal”. Às capitanias do Chile e da Guatemala chegaram ofícios do Rei que solicitavam ajuda das autoridades eclesiásticas na tarefa de encorajar a vacinação “por meios suaves que V. Revma. considere oportunos e compatíveis com a moral cristã”. Os arquivos paroquiais mostraram-se de grande utilidade. Ao compulsá-los, os inspetores conseguiam tabelar, dentre as crianças batizadas a cada ano, quais haviam sido vacinadas e quais permaneciam vulneráveis [21].

Numa dada altura do trajeto, em Caracas, a Expedição dividiu-se em duas. Parte da equipe seguiu sob comando do Dr. Jose Salvany, descendo rumo aos Vice-Reinados que hoje correspondem aos territórios do Peru, da Bolívia, do Chile e da Argentina. A seta original, liderada por Balmis, percorreu o restante do império na América Central, nas Filipinas e noutras possessões asiáticas, com uma escala em Macau, então parte do ultramar lusitano. 

Balmis conclui sua missão em 14 de agosto de 1806, ao desembarcar em Lisboa, donde seguiu num coche para Madri a fim de apresentar seu relatório de viagem ao Rei Carlos IV – que anos antes perdera uma de suas filhas para a varíola. Por bem-sucedido, o modelo foi convertido em política de Estado e retomado durante a restauração dinástica que seguiu-se à Guerra Peninsular (1807-1814). Estamos agora no Sexênio Absolutista de Fernando VII (1814-1820), que seguiu os passos do seu pai ao editar o art. 12 do Decreto de 14 de agosto de 1815:

 

Os reverendíssimos arcebispos, bispos, quaisquer outros prelados eclesiásticos e os veneráveis párocos se esmerarão em persuadir seus fiéis a admitir a benéfica prática da vacinação; e as Justiças de todos os povoados igualmente exortarão os moradores quanto à oportunidade da mesma, para que eles se familiarizem com esta operação na qual todas as famílias têm interesse[22].

 

Três anos depois, Fernando VII complementou o decreto acima com um regulamento que, embora não previsse a vacinação obrigatória, proibia a matrícula de crianças não vacinadas nas escolas públicas [23]. Desta forma, o Estado introduzia um sistema de incentivos que encorajava as famílias a imunizar sua prole, sem recorrer a ações intrusivas que pudessem ferir susceptibilidades. O máximo de resultado com o mínimo de pressão sobre as comunidades organicamente constituídas.

 

III – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

 

Em vista do que precede, podemos concluir que as monarquias ibéricas organizaram suas campanhas de vacinação em torno de três eixos: (1) nacionalização da capacidade de desenvolver e produzir imunizantes; (2) imposição de uma política sanitária uniforme a todas as províncias do império; (3) ação conjunta com as autoridades eclesiásticas na tarefa de informar, persuadir e mobilizar a população.

A partir das coordenadas acima, podemos avaliar até que ponto o Brasil tem se mostrado coerente com o legado da Península. Antes de prosseguir, quero deixar claro que não é meu intuito encontrar culpados, até porque governos atuais e passados têm diferentes parcelas de responsabilidade pelos caminhos – e descaminhos – que nos conduziram até a presente situação. Dito isto, vamos às conclusões:

 

(1) Conforme exposto, Portugal buscou sem demora reduzir sua dependência externa no setor, ciente de que nem sempre seria possível importar vacinas em tempo hábil. Inclusive adiantou-se à Espanha naquilo que podemos qualificar como esforço de P&D. O governo luso não desejava ficar à mercê dos prazos e preços ditados por terceiros, como de fato não ficou.

 

(2) Nem todos os países são capazes de produzir vacinas na escala necessária, seja a partir de pesquisa autóctone, seja mediante assimilação de tecnologia alheia. Os mais atrasados dependerão da ajuda de organismos multilaterais, governos estrangeiros e corporações farmacêuticas internacionais. Considerando os precedentes disponíveis, não é desarrazoado suspeitar que tal assistência envolveria contrapartidas imorais, relacionadas a controle de natalidade, por exemplo.

 

(3) O Brasil detém os recursos técnicos e industriais necessários para blindar-se contra injunções internacionais, mas precisará correr para sair da sua posição de vulnerabilidade. Como é de conhecimento geral, recentemente o Presidente da República solicitou ao governo da Índia a venda imediata de um lote de vacinas. Da parte indiana parece haver pouca disposição para atender ao pedido, considerando que dias atrás o CEO do Instituto Serum declarou que toda a produção local será usada para imunizar os moradores daquele país.

 

(4) Alguns sinais indicam que o problema vem recebendo atenção na esfera federal, embora sem o ritmo de urgência que as circunstâncias impõem. No momento, encontra-se em fase de testes a vacina desenvolvida pela UFPR, que apresentou resultados superiores à similar da Oxford nos ensaios preliminares. No nível macro, a formulação de uma política industrial para o setor de medicamentos está sendo discutida pelo GT-FARMA, grupo de trabalho constituído para este fim nos termos da Portaria nº 2.792, de 29 de junho de 2020. Até agora ocorreram sete reuniões, a últimas delas em 4 de dezembro [24].

 

(5) E aqui surge o primeiro nó a ser desatado. O Planalto terá de rever certas decisões de política externa se quiser viabilizar o surgimento de uma cadeia produtiva de fármacos e medicamentos à altura das necessidades nacionais. É o que indica o parecer publicado pela ABIFINA (Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina) em sua página oficial [25]. No documento em questão, a entidade manifestou-se contra a adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais da OMC, uma vez que o País ficaria impedido de utilizar suas licitações como meio de fomento às indústrias locais. Não é segredo que o Ministério da Economia opinou favoravelmente à assinatura do Acordo, conforme consta na ata da 1ª Reunião Ordinária do Conselho de Estratégia Comercial da CAMEX [26]. E uma vez que a ABIFINA tem assento no GT-FARMA, parece-me razoável supor que ela reiterou seu ponto de vista nas reuniões do Grupo. O Planalto refletiu a respeito? Tudo indica que não, considerando que em 5 de outubro o Itamaraty iniciou tratativas com a OMC para submeter o País às normas do Acordo…

 

(6) Vamos ao segundo eixo. Conforme visto, sequer o Império Espanhol, embora assentado no sistema de fueros, absteve-se de impor uma política sanitária uniforme a todas as províncias. Problemas de abrangência nacional merecem tratamento igualmente nacional na sua cobertura geográfica. Era este o caso da varíola, como é o da presente pandemia.

 

(7) No Brasil, a gestão da crise tem sido marcada por conflitos entre o Planalto e os governos estaduais. Muito infeliz foi o STF ao lavrar o acórdão da ADI nº 6341, que conferiu autonomia aos governadores para deliberar sobre a matéria. Destoa da tradição ibérica, assim como vai na contramão da experiência adquirida durante o surto de febre amarela que varreu o País em 1850. Não custa lembrar que naquela ocasião foi constituída a Junta Central de Higiene Pública, doravante responsável pela expedição de instruções aos municípios naquilo que tivesse relação com a epidemia (Decreto nº 598, de 14 de setembro de 1850).

 

(8) Será preciso alterar a Lei nº 11.631 de 2007 se quisermos dotar o Governo Federal dos poderes necessários para desencadear uma resposta abrangente. Pela letra atual, a lei permite ao Planalto decretar mobilização nacional em situação de guerra, mas não em caso de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, tal como a define o Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011. A mobilização, uma vez decretada, confere à União autoridade para convocar e alistar os entes federados – Estados e municípios – no esforço por ela dirigido.

 

(9) Vamos ao último eixo, o mais importante de todos: ação coordenada com as autoridades eclesiásticas na tarefa de informar, persuadir e mobilizar a população. É triste constatar que nada tem sido feito nesse terreno, em razão de três obstáculos – um de ordem legal, outro de ordem política e outro de ordem cultural.

 

(10) Sob a ótica legal, a maior barreira reside no art. 19 da Constituição, que reveste o Estado de caráter laico e assim impede o ressurgimento daquela simbiose que existia quando “o sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios”, como lembrou o Papa Leão XIII ao editar a Encíclica Immortale Dei. Decerto não será exagero dizer que Estado laico faz mal à saúde, pois, além de dificultar a salvação das almas, cria embaraços à cooperação entre o clero e o governo, hoje mais premente do que nunca. Claro que o artigo acima abre uma brecha ao permitir “a colaboração de interesse público”, mas isso é muito pouco perto do que exigem os deveres da Nação e as prerrogativas de Deus.

 

(11) Sob o aspecto político, o maior obstáculo reside na composição da equipe ministerial, para não citar o próprio Presidente da República. Todos ali ignoram o que seja a Doutrina Social da Igreja. Recebem inspiração doutras fontes, como o liberalismo, o protestantismo e o sionismo. Portanto, para agravar o caráter laico do Estado, temos um governo impermeável à influência do catolicismo. Ao menos nas instâncias decisórias mais elevadas, não há sinal de disposição para solicitar a cooperação do clero.

 

(12) Por fim, do ponto de vista cultural, não é menor o desafio a ser vencido, dado que boa parte da população está desigrejada. Nenhum de nós ignora que há uma diferença expressiva entre o Brasil atual e o Brasil que D. João VI encontrou em 1808. Naquele tempo a Nação era católica em sua quase totalidade, de modo que bastava a palavra do clero para mobilizar o esforço coletivo numa dada direção. Hoje isso é mais difícil. Estamos pagando o preço desses 200 anos de apostasia, cuja reversão é tarefa que se impõe com urgência.

 

Sei que muitos leitores, alguns dos quais encantados pelo ‘way of life’ de países estranhos à nossa formação, podem se sentir desconfortáveis com o teor deste artigo. Ocorre que a Terra de Santa Cruz não pode, sob pena de trair sua essência e vocação, buscar soluções fora da tradição que lhe deu origem. A Iberoamérica foi construída pela aliança entre a Igreja e o Estado – fosse ele espanhol ou lusitano. Desde o começo, a Cruz e a Espada aqui estiveram associadas num projeto civilizador. Não é por acaso que o Brasil, enfermo há dois séculos, piora na proporção em que ambas se afastam e esboça alguma melhora quando elas se aproximam.

Agradeço aos leitores pela paciência e atenção. E que Deus nos ajude a proteger este País que amamos.

 

NOTAS:

 

[1] Muitos católicos têm perguntado se seria condenável tomar vacinas desenvolvidas a partir de pesquisas com células de fetos abortados. Sabemos que nem todas as vacinas têm sua origem nesses processos, mas algumas têm. Logo, a pergunta é pertinente. Afinal, nenhum cristão deseja cooperar com o mal, ainda que ex post facto.

 

O artigo do Pe. Arnaud Sélégny conclui que é lícito servir-se de tais imunizantes, supondo que não haja outros à disposição, primeiro porque a cooperação com o mal aí se configura de maneira muito remota; segundo porque no outro prato da balança há riscos graves o bastante para isentar o paciente de culpa pelo uso de uma vacina maculada na sua origem.

 

Em outras palavras, seria irrazoável exigir do paciente que se desproteja de um perigo iminente sob alegação de que, ao tomar determinada vacina, ele estaria convalidando um aborto ocorrido há anos, até porque o grosso da culpa restringe-se às empresas e pessoas envolvidas no comércio de tecidos e pesquisas subseqüentes.

 

[2] Piedade indiscutível, visto que D. Maria I muito fez para restaurar a simbiose Igreja-Estado, abalada pelas medidas anticlericais da gestão pombalina. Sua primeira medida nesse campo, consumada em 20 de julho de 1778, consistiu em assinar com a Santa Sé uma nova concordata, por meio da qual “se corrigiam abusos regalistas da situação transacta” (BEIRÃO, Caetano Maria de Abreu. D. Maria I, 1777-1792: subsídios para a revisão da história do seu reinado. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1944, p. 114). A mais jovem biógrafa de D. Maria I fornece os seguintes pormenores: “Enquanto a sua mãe negociava tratados com a Espanha e estabelecia as bases de dois casamentos dinásticos, D. Maria iniciou a restauração do poder da Igreja. Despediu o Cenáculo Vilas Boas, preceptor liberal do seu filho, e escreveu uma carta pública a Miguel da Anunciação, reinstalando-o como Bispo de Coimbra e referindo-se à ‘grande confiança e estima que tenho por ti’. Apesar de não ter poder suficiente para ressuscitar a Companhia de Jesus, fez o melhor que pôde para corrigir e compensar a perseguição de Pombal a esta ordem religiosa, dando pensões a jesuítas libertados, enviando dinheiro ao Papa para cobrir os custos da manutenção de padres no exílio e restaurando os nomes dos santos jesuítas no calendário das festas religiosas” (ROBERTS, Jenifer. D. Maria I: a vida notável de uma rainha louca. Alfragide: Casa das Letras, 2009, p. 68)

 

[3] BANDEIRA, José Ramos. Vacinas microbianas: esboço histórico. Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XV, 1945, p. 574.

 

[4] Criada em 1526, a Provedoria-Mor de Saúde tinha atribuições típicas de vigilância sanitária, definidas pelo Decreto de 15 de dezembro de 1707. Seus funcionários deviam fiscalizar a qualidade dos alimentos expostos nas feiras, policiar a limpeza das ruas, recolher cães vadios, inspecionar fábricas, tabernas e matadouros. Esclarece José Subtil que a política sanitária portuguesa era caracterizada “pela doutrina corporativa e pelo modelo doméstico da governação em que o príncipe deve cuidar da saúde dos seus vassalos como filhos da sua grande família que é o Reino. Um modelo decalcado da lógica familiar e da pastoral cristã” (SUBTIL, José. O Antigo Regime da saúde pública entre o Reino e o Brasil. Revista Ultramares, vol. 1, nº 8, agosto-dezembro/2015, p. 39)

 

[5] NIGRA, Clemente Maria da Silva. O Barão George Henrique de Langsdorff, 1774-1852: o grande cientista esquecido no Brasil. In: Anais do II Colóquio de Estudos Teuto-Brasileiros. Recife: UFPE, 1968, p. 299.

 

[6] HELITO, Alfredo Salim & KAUFFMAN, Paulo. Saúde: entendendo as doenças, a enciclopédia médica da família. São Paulo: Nobel, 2007, p. XLI.

 

[7] SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura letrada e cultura oral no Rio de Janeiro dos vice-reis. São Paulo: UNESP, 2013, pp. 109-113.

 

[8] SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História Geral da Medicina Brasileira, Volume I. São Paulo: Hucitec, 1977, p. 272.

 

[9] NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. D. João: o indivíduo e a história. In: BESSONE, Tânia Maria (Org.). D. João VI e o oitocentismo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011, p. 317.

 

[10] FLAJANI, Alessandro. Saggio filosofico di Alessandro Flajani professore di medicina intorno agli stabilimenti scientifici in Europa appartenenti alla medicina. Roma: Nella Stamperia di S. Michele a Ripa, 1807, pp. 274-282.

 

[11] Pio VII determinou que os moradores dos Estados Papais recebessem a vacina como “uma descoberta preciosa que dará à Humanidade um motivo adicional de gratidão ao Onipotente” (HOPKINS, Donald. The Greatest Killer: Smallpox in History. Chicago: University of Chicago Press, 2002, p. 83)

 

[12] RANGEL, Alberto. Anotações as cartas de D. Pedro I a D. Domitila. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas do Archivo Nacional, 1974, p. 297.

 

[13] MONTEIRO, Denise Brito. A epidemia da varíola e a vacinação obrigatória: repercussões na sociedade recifense no início do século XX. Recife: UFPB, 2005, p. 30.

 

[14] ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Publicação oficial de documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, Volume LX. São Paulo: Typographia Andrade & Mello, 1901, p. 220.

 

[15] BRAGA, Isabel Maria Ribeiro Mendes Drumond. Assistência, saúde pública e prática médica em Portugal: séculos XV-XIX. Lisboa: Universitária Editora, 2001, p. 155.

 

[16] ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Publicação oficial de documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, Volume XXXVI. São Paulo: Typographia do Diário Oficial, 1902, p. 99.

 

[17] A embarcação foi assim batizada em homenagem a María Pita, moradora da Corunha que liderou o contra-ataque ao desembarque britânico naquela cidade, em 1589. Os combates deram-se no contexto da Expedição Drake-Norris, co-financiada pelo Sultão do Marrocos, Ahmad al-Mansur. A frota era formada por 140 navios ingleses e holandeses, sendo que um deles levava o embaixador muçulmano Marzuq Rais. Parte da força investiu contra o porto de Corunha, a fim de destruir a esquadra espanhola, enquanto outra parte desembarcou na Praia da Consolação, com o objetivo de incitar uma rebelião com apoio de dissidentes da nobreza lusa. A operação fracassou nas duas frentes, sendo que na Corunha a reação foi liderada por María Pita, esposa de um escudeiro. Consta que ela virou o jogo ao matar o porta-bandeira da tropa britânica, reacendendo o ânimo da população com a exortação que bradou em seguida – “Quen teña honra que me siga!”

 

[18] MORALES, Antonio Bachiller y. El Obispo Espada: sus virtudes, sus méritos, su apostolado. Revista de Cuba, Tomo XI, 1882, p. 157.

 

[19] CAMPILLO, Manuel Ignacio González del. Exhortación que el Obispo de Puebla hace a sus Diocesanos para que se presten con docilidad á la importante práctica de la Vacuna. México: Imp. Mariano Joseph de Zúñiga y Ontiveros, 1804.

 

[20] MARTÍNEZ, Susana María Ramírez. La Real Expedición Filantrópica de la Vacuna en la Real Audiencia de Quito. Madri: Universidad Complutense de Madrid, 1998, p. 601.

 

[21] CAFFARENA, Paula. Viruela y vacuna: Difusión y circulación de una práctica médica. Chile en el contexto hispanoamericano 1780-1830. Santiago: Editorial Universitaria de Chile, 2016, pp. 171-172.

 

[22] BALMASEDA, Fermín Martín (Org.). Decretos del Rey Don Fernando VII, expedidos desde su restitucion al Trono Español hasta el restablecimento de la Constitución de 1812. Mexico: Imprenta de Galvan, 1836, p. 80.

 

[23] RUBIO, Eduardo Sánchez. Historia de la beneficencia municipal de Madrid y medios de mejorarla. Madri: Imprenta a cargo de Ramon Berenguillo, 1869, p. 30.

 

[24] O Grupo de Trabalho funciona sob coordenação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Das reuniões têm participado representantes do setor produtivo – ALANAC, Sindusfarma, ABIFINA e Abiquifi – e das Forças Armadas, na pessoa do Diretor do Departamento de Promoção Comercial do Ministério da Defesa.

 

[25] O parecer foi publicado em 20 de julho e atualizado em 12 de agosto. Seu último parágrafo faz menção expressa à pandemia: “Diante do quadro exposto, a ABIFINA entende que é necessário e urgente que o governo brasileiro dialogue com o setor privado, em especial o segmento farmacêutico e farmoquímico, estabelecendo os limites e exceções setoriais necessários para a proteção e fortalecimento deste segmento. O ano de 2020, em especial a pandemia provocada pela COVID-19, tornou mais evidente o quanto é estratégico o desenvolvimento da capacidade produtiva, em território nacional, de insumos farmacêuticos ativos e o quanto é importante o desenvolvimento de uma política pública que capacite e amplie a capacidade do Complexo Industrial da Saúde de atender as demandas do Sistema Único de Saúde” [Link: http://www.abifina.org.br/arquivos/download/posicionamento_abifina__-_acordo_de_compras_governamentais_omc_rev_12_08_2020.pdf]

 

[26] Ata da 1ª Reunião Ordinária do Conselho de Estratégia Comercial da CAMEX, publicada no Diário Oficial da União, nº 105, 03/06/2020, Seção 1, p. 473.

 

* O autor é professor por meio expediente e católico em tempo integral.