NEOCONSERVADOR: POSIÇÃO INTERMEDIÁRIA IMPOSSÍVEL ENTRE O CATOLICISMO E O MODERNISMO (SÃO LEGALISTAS E MODERNISTAS COM CAPA E MÁSCARA DE TRADICIONALISTAS)

Chegamos finalmente à conclusão da conferência, cansado leitor, e será necessário tirar a nossa conclusão.

Quando a missa nova foi apresentada pela primeira vez 66 a uma comissão de bispos e cardeais na Capela Sistina, celebrada pelo mesmo Mons. Bugnini – seu principal autor – vários dentre os prelados se retiraram em sinal de protesto. Estava entre eles, por exemplo, Dom Slipyi. Esta foi a primeira entre as tantas reações católicas contra essa reforma litúrgica de caráter revolucionário. Mas a principal delas, podemos dizer, foi o documento apresentado pelo então Prefeito da Doutrina da Fé, o Cardeal Ottaviani, chamado Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, que, exercendo sua função de proteger a Fé católica, lançava um grito de alarme contra o perigo deste inquietante rito.

O cardeal resumiu o problema da missa nova assim: “O Novus Ordo Missae representa, tanto no seu conjunto como nos seus detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa”. E no parágrafo seguinte: “As razões pastorais apresentadas para justificar uma ruptura tão grave – ainda que tais razões pudessem ser sustentadas em face de considerações doutrinárias – são insuficientes”.

Ora assim como o novo Código de Direito de Canônico é a expressão jurídica da nova doutrina sobre a Igreja – como o afirmou João Paulo II – assim também a missa nova é a sua expressão litúrgica. Eis o Vaticano II transformado em lei e liturgia.

Podemos, portanto, concluir com João Paulo II que o Concílio apresenta uma doutrina completamente nova, que, como bem expressa o Cardeal Ottaviani, está em grave ruptura com a Fé católica. Podemos para frasear, então, a sua analise da missa nova: O Vaticano II representa, tanto no seu conjunto como nos seus detalhes, um surpreendente afastamento da doutrina católica.

Mas se essa grave ruptura nos é apresentada pela mesma hierarquia, se o mesmo Concílio se afirma uma novidade, como é possível, então, que o Cardeal Ratzinger, e com ele o Pe. Azevedo, afirmem que o Vaticano II é uma “Continuidade”?

A grande pergunta para conseguir a chave desse enigma é: O Vaticano II é continuidade de quê? O Papa Paulo VI nos explicará.

De fato, em seu discurso da última sessão pública na aula Conciliar, no dia 07 de dezembro de 1965, ele diz que, para entender o Concílio, é necessário entender a situação histórica em que está inserido, “pois, embora o Concílio não tenha querido pronunciar-se em sentenças dogmáticas extraordinárias (…), a Igreja baixou para dialogar com o homem (…), a Igreja falou ao homem de hoje, tais quais eles são.”

E como define o Papa “esse homem de hoje”? Esse ponto é muito importante, pois parece ser essencial no pensamento do próprio Concílio. Observemo-lo atentamente:

“Para o (o Concílio) apreciarmos devidamente, é necessário recordar o tempo em que se elevou a cabo este acontecimento: foi num tempo em que, como todos reconhecem, os homens estão voltados mais para a conquista da terra do que para o reino de Deus; foi num tempo em que o esquecimento de Deus se torna habitual, como se os progressos da ciência o aconselhassem; foi num tempo em que o ato fundamental da pessoa humana, mais consciente de si e da sua liberdade, tende a exigir uma liberdade total, livre de todas as leis que transcendam a ordem natural das coisas; foi num temo em que os princípios do laicismo aparecem como a consequência legítima do pensamento moderno e são tidos quase como norma sapientíssima segundo a qual a sociedade humana deve ser ordenada; foi num tempo em que a razão humana pretende exprimir o que é absurdo e tira toda a esperança; foi num tempo, finalmente, em que as religiões étnicas estão sujeitas a perturbações e transformações jamais experimentadas. Foi neste tempo que se celebrou o nosso Concílio”.

A esse homem em aberta rebelião contra Deus, que se põe a si mesmo como o centro de todos os seus atos, e a sua liberdade como valor supremo, que o papa chama de “humanista moderno que nega a transcendência das coisas supremas”.

O Vaticano II é, então, um discurso não doutrinário-dogmático que se dirige ao liberal clássico ateu. E o que lhe quer dizer? Qual será o objeto desse esforço tão colossal para “baixar a dialogar” com a Revolução?

É aqui onde nos surpreendemos sobremaneira, pois o Papa Paulo VI diz solenemente que o “humanismo novo” do Concílio tem a mesma finalidade que o humanismo ateu. E foi especialmente isso que o Concílio se propôs, ou seja, a explicar ao humanista ateu que o catolicismo liberal e eles realizam a mesma obra: “a promoção da dignidade do homem”. Quase não acreditamos nas linhas que lemos: “E vós humanistas modernos, que negais as verdades transcendentes, concedei-lhe ao Concílio ao menos este mérito, reconhecei este nosso humanismo novo: nós também- e mais do que ninguém – somos cultores do homem.”

Paulo VI está citando quase literalmente Jacques Maritain, que foi chamado pelos membros do Concílio de “o Profeta”. Ele foi convidado, de fato, pelo papa, para fazer um discurso na aula conciliar a todos os bispos e cardeais. Conforme a sua doutrina, o catolicismo medieval, por demais teocêntrico, caiu no deplorável exagero de descuidar os valores humanos. Maritain chamará o catolicismo medieval de “deísmo desumano”. E o “Profeta” continua explicando no seu famoso livro Humanismo Integral que o humanismo ateu do Renascimento foi simples reação contra esses excessos obscurantistas. Mas, como infelizmente eles também terminaram por cair num exagero de não “transcender às coisas eternas”, seu humanismo terminou por incluir-se numa violenta luta contra Deus e sua Igreja nas revoluções. Lamentável, mas compreensível, diz Maritain. Depois das duas grandes guerras, profetiza o literato, teria chegado o tempo de encontrar posição intermediária, ponto de equilíbrio entre o catolicismo autêntico e o liberalismo revolucionário: eis aqui o “humanismo novo” do Concílio. Os liberais entenderam claramente: “Nós lutamos durante um século e meio para que nossas opiniões prevalecessem dentro da Igreja, e não tivemos sucesso. Mas por fim veio o Vaticano II e nós triunfamos”.

Dom Lefebvre comentando a citação diz:

“Mas, então, o que quiseram os católicos liberais durante um século e meio? O casamento da Igreja e da revolução. O desposório da Igreja com a subversão. A união da Igreja com as forças destrutoras da sociedade, de qualquer sociedade, da sociedade familiar e civil até a sociedade religiosa. E esta união está escrita no Concílio: tomem o documento ‘Gaudium et Spes’ e o encontrareis ali: é necessário unir os princípios da Igreja com a Igreja com as concepções do homem moderno. O que quer dizer isso? Quer dizer que a Igreja deve desposar, a Igreja Católica, a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, os princípios que lhe são contrários, que lhe atacam, que sempre estiveram contra a Igreja. E é precisamente esta a união que foi promovida no Concílio pelos homens da Igreja. Mas não pela Igreja. Porque Ela jamais admitiria uma coisa semelhante”.

Esta união com o pensamento liberal é reconhecida claramente por todos os que fizeram o Vaticano II. Paulo VI di-lo explicitamente no discurso citado, mas simplesmente nega que isso seja uma deformação da verdadeira Religião. “Tudo isto e tudo o mais que poderíamos ainda dizer a cerca do Concílio, terá por ventura da Igreja em Concílio para a cultura atual que toda é antropocêntrica? Desviado, não; voltado, sim.” O Concílio tem, então, que dirigir-se a dois campos opostos, que até então estavam travando uma luta de morte: a Religião verdadeira de Nosso Senhor Jesus Cristo, e a religião do homem, que se chama Revolução. Deus no início pôs inimizade perpétua entre a Descendência da Mulher e da Serpente. E Nosso Senhor com toda a sua mansidão disse que não rezava pelo “mundo” nosso inimigo. Mas o bondoso Concílio quis que esses inimigos fizessem as pazes.

“O humanismo laico e profano apareceu – diz o Papa do Concílio – finalmente, em toda sua terrível estatura, e por assim dizer desafiou o Concílio para a luta. A religião, que é o culto de Deus que quis ser homem, e a religião – porque o é – que é o culto do homem que quer ser Deus, encontraram-se. Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isto poderia ter se dado, mas de fato não se deu. (…) Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas – que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra – absorveram toda a atenção deste Concílio.

Será necessário convencer os católicos de que não há apostasia em entregar-se aos princípios da Revolução anticatólica; e será necessário de convencer os liberais clássicos de que, no fim das contas, temos os mesmos princípios, as mesmas finalidades, e que eles não perdem nada em tolerar o catolicismo desfigurado.

Para convencer os católicos, o Vaticano II usará linguagem difícil, confusa, ambígua, evitando sempre choque direto com a doutrina católica. Usará muitas vezes as ideias centrais do catolicismo, mas tiradas do seu sentido e contexto original, e compostas discretamente no sistema revolucionário. Assim os documentos do Vaticano II parecem belos “shoppings” ao serviço do homem, mas construídos com as pedras de antigas catedrais. E, se mesmo assim, os obstinados e obscurantistas medievais insistirem em permanecerem fieis ao catolicismo, fieis à doutrina revelada por Deus e ensinada pelo Magistério da Igreja, se tiverem a audácia de recusar a “grave ruptura” que nos é oferecida, então se usará com eles dos rigores da perseguição, como a que sofreu Dom Marcel Lefebvre.

Para convencer os liberais ateus, o Vaticano II mostrou-lhes que não é necessário dar nenhum passo fora da sua posição, não é necessário abdicar de nenhum de seus princípios; dirá aos humanistas modernos que sua “conversão” não significa a submissão a Deus e à Igreja. O Vaticano II mostrou-lhes que todas as suas reivindicações, exigências e rebeldia, são as mesmas aspirações da Igreja. O único que deve fazer que, ao dar culto ao homem, estão honrando a Deus. E insiste que isso é muito útil para eles mesmos, pois desse modo terão toda a estrutura da Igreja a serviço da religião do homem.

Voltemos à nossa pergunta inicial: O Vaticano II é continuidade de quê? Certamente não é continuidade do catolicismo, do qual guarda somente a estrutura e as aparências (e muitas vezes nem isso!). O Vaticano II é continuidade do movimento Renascentista humanista que nasceu no século XIV, e tomou forma com a Revolução protestante, difundiu-se e fez-se liberal, com a Revolução Francesa e Revolução comunista. O Vaticano II é, por um lado, uma covardia diante de um mundo hostil pretensamente vencedor, capitulação e debandada diante do inimigo. E, por outro lado, é a tentativa de injetar vida nova no humanismo que já não acreditava no homem, depois de tantos séculos de decepção. O Cardeal Ratzinger disse abertamente na sua famosa entrevista ao periódico italiano Jesus: “O problema dos anos 60 era o adquirir os melhores valores de dois séculos de cultura liberal. De fato esses são valores que, apesar de terem nascido fora da Igreja, podem encontra o seu lugar, purificados e corrigidos, na visão que a Igreja tem do mundo. Foi o que se realizou. É verdade que os resultados decepcionaram as esperanças talvez um pouco ingênuas. É por isso que será necessário encontrar um novo equilíbrio.”

Certamente o Vaticano II se propõe como algo intermediário, ou “moderado”. Nisso o nosso conferencista tem razão. Mas infelizmente isso não é possível. Não há meio termo entre ter Fé e não tê-la. Não há catolicismo pela metade. Querer buscar este ilusório ponto de equilíbrio é cair fora da barca da Santa Igreja, sem a qual não há salvação.

No fim do capítulo VI do Breve Exame Crítico, o Cardeal Ottaviani mostra como a doutrina católica sobre a Santa Missa que foi ensinada de modo infalível pelo Concílio de Trento é contradita diretamente pelo rito da missa nova; e conclui com estas dolorosas palavras: “Mas é a esta fé que a consciência católica está para sempre ligada. Desta forma, com a promulgação da Nova Ordenação da Missa, a verdadeira fé católica depara-se com a trágica necessidade de fazer uma escolha”.

Para continuar parafraseando o venerável Prefeito para a Doutrina da Fé, podemos dizer que, com o Vaticano II a verdadeira Fé católica depara-se com a trágica necessidade de fazer uma escolha. Escolha entre três posições (pois, como bem aconselha nosso conferencista devemos sempre buscar essa disposição tripartite para nossas escolha): 1) a posição da aberta apostasia do mundo moderno, a apostasia na qual caiu a maioria dos católicos, que abandonaram a prática da Religião depois do Concílio; 2) a posição do “liberalismo católico moderado” ou que se crê moderado, do Vaticano II, que quer ser meio termo entre a religião medieval e o liberalismo ateu. Essa é a posição que nos propõe o Pe. Azevedo e 3) a de manter-nos fieis no meio desta tormenta. Essa terceira posição tem a gravíssima dificuldade de exigir o dificílimo equilíbrio entre o respeito e submissão à autoridade e a resistência aos erros dos homens na Igreja, que, em lugar de exercer em sua autoridade em nome de Cristo, querem ser os representantes de um consenso democrático.

Eis aí, paciente leitor, o dever de escolha que é posto diante de todos nós.

São Paulo já nos tinha avisado “que virá um tempo em que muitos não suportaram a sã doutrina, mas pelo contrário buscaram para si mestres conforme os seus desejos, levados pelo prurido de ouvir. Afastarão os seus ouvidos da Verdade e os entregarão às fábulas (…). Eu combati o bom combate, conclui a minha carreira, guardei a Fé.”

Dom Lefebvre disse no sermão de Lille, para explicar a sua resistência ao Vaticano II: “Quando estiver diante do meu Juiz, eu não quero que Ele possa me dizer: – Tu também, tu deixaste também destruir a Igreja”.

Pe. Luís Cláudio Camargo (Fraternidade Sacerdotal São Pio X)

Fonte do Artigo: Revista Permanência Nº 273